quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

O velho barbudo

Era uma vez um velho barbudo que vivia nas nuvens. Lá bem no alto. Era

um tipo bem disposto e rechonchudo. Mesmo vivendo sozinho. Sempre

houve muitas histórias e contos que ilustravam toda uma corte de

serventes e sub-serventes, também alegres e pacatos, à sua volta. Mas

a realidade é que este tipo com aparência de pescador de romance,

apenas lhe faltando o impermeável e chapéu amarelos, sempre viveu

totalmente e invariavelmente só. Talvez isto soe assutador para nós,

os Comuns. Mas nao para ele. Para o velhote, a solidao nem seuqer

existia pois nao havia termo de comparacao. Já tinha ouvido falar

nessa doenca, poem. Mas boatos nao era com ele. O que el gotava mesmo

era de se deitar de barriga para o ar , bracos atrás da nuca, e

degustar longas sonecas. Onde ele vivia, o céu era sempre azul com

umas pintas de nuvem aqui e ali as quais o ajudavam nas suas raras

deslocacoes. Era tudo tao calmo e celestial que a mais sonora das

tempestades soava uma brisa que apenas tornava as sestas ainda mais

tranquilas e profundas. O nome do velhote era Deus.

Era conhecido e respeitado por toda a parte. As razoes para tal,

desconheco. Também já fiz muitas e boas sestas ao longo da minha vida

e nuca ninguém construiu monumentos ostentosos, travou guerras

sangrentas ou me venerou antes das refeicoes e ao deitar por isso.

Desde crianca que me pergunto e pergunto porque nao posso ser

respeitado como ele. Despois de muitos inquéritos detalhados, leituras

de fazer doer a vista e noites em claro, faminto, concluí que que as

únicas razoes só poderiam ser as barbas e a idade. Pela barba nao tive

de esperar muito. Agora sempre quero ver se quando chegar a velho

terei as mesmas regalias que este pescador da banheira.

Tenho a certeza que ele se riria destas minhas palavras agora se ao

menos pudesse. Se estivesse vivo. Sim, meus amigos, a verdade é que o

nosso querido pândego etéreo morreu aqui há coisa de uns tempos. Ao

que parece, a malta cá de baixo comecou a exigir demasiado dele e ele,

por sua vez, deixou de ter tanto tempo para dormer descansado na sua

nuvem favorita. A tal que até já tinha a forma da sua barriga e que

todas as criancas conseguem facilmente identificar ainda hoje. Os

Comuns enviavam-lhe milhoes de requerimentos por Segundo em papel de

oracao com vista a que Deus fizesse jus ao seu nome. Todos excepto os

Chineses, que trabalhavam para outro instituicao. Nao é que o nosso

querido omnimpotente querubim um dia sucumbiu a tanta correspondencia

e caiu da sua nuvem favorita? É o que vos digo. Esta, nehum analista,

bruxo, astróloga, astrónoma, repórter cacador de talentos ou

meteorologista conseuiu prever. Caiu como um pato gordo. Mas nao

provocou grandes danos, felizmente. Nem maremotos ou decádas de

escuridao e pó. Simplesmente caiu redondo como as ancas de uma

camponesa. Ainda fez bola de fogo, o que provocou um efeito

contundente, reunindo ordas de espectadores por todo o globo ansiosos

por assistir a tao raro espectáculo de luzes. Desta vez, nenhum povo

ou raca se pôde queixar de falta de visibilidade como frequentemente

sucede eclipses. Dos destrocos, deu para aproveitar alguma da longa

barba para fazer corda para navios, mantas que chegaram para aquecer

toda a populacao da Sibéria, Himalaias e Escandinávia, perucas

vitalícias para carecas e alguns novelos para regozinho dos gatos

felizardos que os receberam como prémio de bom comportamento.

Como entre os Comuns é usual respeitar os mais velhos, um grande

funeral foi realizado. Toda a aldeia global estava presente e todas as

idades, racas e credos quiseram prestar a sua homenagem. Acrescento o

triste detalhe que, mesmo no seu leito de morte, este velho barbudo

nao se viu livre de receber algumas toneladas de requerimentos e

preces. Em boa hora surgiram os cidadaos mais sensatos, as criancas,

interrompendo tamanha carnificina burocrática com jogso, coloridos

espectáculos de variedades com todo o tipo de música, acrobacias e

magia, interpolados aqui e ali com invocacoes de Deus sob inúmeros

poemas, quadros e ilustracoes que representavam momentos-chave do seu

percurso de vida. Na retina ficaram-me imagens de um pescador

saltitao, nas nuvens, e um gorducho sorridente enroscado em algodao.

No final da cerimónia todos voltaram aos seus cantos e recantos. Quicá

um ou outro ainda tenha olhado para o alto, como quando nos batem com

um martelito no joelho e a perna salta sem qualquer motivo aparente

para tal. Contudo, de onde eu estava, só via pessoas a olhar em

frente, a caminho de algures, e alguns comentários acerca do tempero

da comida à disposicao na cerimónia.

Era um final de tarde de Maio ameno e os corpos já evidenciavam os

primeiros tracos de pele rosada. Por todo o lado havia abundância

palpitante de flora e fauna típicas da época com cores verde terra,

laranja, amarelo, lilás e dourado predominando. No horizonte, já se

avistavam as primeiras estrelas mas nao eram por enquanto suficientes

para tantos desejos.







FIM





Nota do narrador: O funeral teve lugar no Cemitério das Alminhas, em

Penacova. A localizacao do evento foi unânimamente acordada em

concílio e todas as providências para que todos os presentes tivessem

1 comentário:

  1. Fiquei deveras deliciado, a devorar tão bela desgutação que nos presentearam. Fiquei com remorsos no fim, por ter acabado, mas repeti mais uma vez, mais outra... Quando dei por mim, tinha lido e relido inúmeras vezes. Sem dar conta, de tal. Mas o prazer era tanto que não me consegui conter. Bravo a quem escreveu tão belo e encantador texto.

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