Era uma vez um velho barbudo que vivia nas nuvens. Lá bem no alto. Era
um tipo bem disposto e rechonchudo. Mesmo vivendo sozinho. Sempre
houve muitas histórias e contos que ilustravam toda uma corte de
serventes e sub-serventes, também alegres e pacatos, à sua volta. Mas
a realidade é que este tipo com aparência de pescador de romance,
apenas lhe faltando o impermeável e chapéu amarelos, sempre viveu
totalmente e invariavelmente só. Talvez isto soe assutador para nós,
os Comuns. Mas nao para ele. Para o velhote, a solidao nem seuqer
existia pois nao havia termo de comparacao. Já tinha ouvido falar
nessa doenca, poem. Mas boatos nao era com ele. O que el gotava mesmo
era de se deitar de barriga para o ar , bracos atrás da nuca, e
degustar longas sonecas. Onde ele vivia, o céu era sempre azul com
umas pintas de nuvem aqui e ali as quais o ajudavam nas suas raras
deslocacoes. Era tudo tao calmo e celestial que a mais sonora das
tempestades soava uma brisa que apenas tornava as sestas ainda mais
tranquilas e profundas. O nome do velhote era Deus.
Era conhecido e respeitado por toda a parte. As razoes para tal,
desconheco. Também já fiz muitas e boas sestas ao longo da minha vida
e nuca ninguém construiu monumentos ostentosos, travou guerras
sangrentas ou me venerou antes das refeicoes e ao deitar por isso.
Desde crianca que me pergunto e pergunto porque nao posso ser
respeitado como ele. Despois de muitos inquéritos detalhados, leituras
de fazer doer a vista e noites em claro, faminto, concluí que que as
únicas razoes só poderiam ser as barbas e a idade. Pela barba nao tive
de esperar muito. Agora sempre quero ver se quando chegar a velho
terei as mesmas regalias que este pescador da banheira.
Tenho a certeza que ele se riria destas minhas palavras agora se ao
menos pudesse. Se estivesse vivo. Sim, meus amigos, a verdade é que o
nosso querido pândego etéreo morreu aqui há coisa de uns tempos. Ao
que parece, a malta cá de baixo comecou a exigir demasiado dele e ele,
por sua vez, deixou de ter tanto tempo para dormer descansado na sua
nuvem favorita. A tal que até já tinha a forma da sua barriga e que
todas as criancas conseguem facilmente identificar ainda hoje. Os
Comuns enviavam-lhe milhoes de requerimentos por Segundo em papel de
oracao com vista a que Deus fizesse jus ao seu nome. Todos excepto os
Chineses, que trabalhavam para outro instituicao. Nao é que o nosso
querido omnimpotente querubim um dia sucumbiu a tanta correspondencia
e caiu da sua nuvem favorita? É o que vos digo. Esta, nehum analista,
bruxo, astróloga, astrónoma, repórter cacador de talentos ou
meteorologista conseuiu prever. Caiu como um pato gordo. Mas nao
provocou grandes danos, felizmente. Nem maremotos ou decádas de
escuridao e pó. Simplesmente caiu redondo como as ancas de uma
camponesa. Ainda fez bola de fogo, o que provocou um efeito
contundente, reunindo ordas de espectadores por todo o globo ansiosos
por assistir a tao raro espectáculo de luzes. Desta vez, nenhum povo
ou raca se pôde queixar de falta de visibilidade como frequentemente
sucede eclipses. Dos destrocos, deu para aproveitar alguma da longa
barba para fazer corda para navios, mantas que chegaram para aquecer
toda a populacao da Sibéria, Himalaias e Escandinávia, perucas
vitalícias para carecas e alguns novelos para regozinho dos gatos
felizardos que os receberam como prémio de bom comportamento.
Como entre os Comuns é usual respeitar os mais velhos, um grande
funeral foi realizado. Toda a aldeia global estava presente e todas as
idades, racas e credos quiseram prestar a sua homenagem. Acrescento o
triste detalhe que, mesmo no seu leito de morte, este velho barbudo
nao se viu livre de receber algumas toneladas de requerimentos e
preces. Em boa hora surgiram os cidadaos mais sensatos, as criancas,
interrompendo tamanha carnificina burocrática com jogso, coloridos
espectáculos de variedades com todo o tipo de música, acrobacias e
magia, interpolados aqui e ali com invocacoes de Deus sob inúmeros
poemas, quadros e ilustracoes que representavam momentos-chave do seu
percurso de vida. Na retina ficaram-me imagens de um pescador
saltitao, nas nuvens, e um gorducho sorridente enroscado em algodao.
No final da cerimónia todos voltaram aos seus cantos e recantos. Quicá
um ou outro ainda tenha olhado para o alto, como quando nos batem com
um martelito no joelho e a perna salta sem qualquer motivo aparente
para tal. Contudo, de onde eu estava, só via pessoas a olhar em
frente, a caminho de algures, e alguns comentários acerca do tempero
da comida à disposicao na cerimónia.
Era um final de tarde de Maio ameno e os corpos já evidenciavam os
primeiros tracos de pele rosada. Por todo o lado havia abundância
palpitante de flora e fauna típicas da época com cores verde terra,
laranja, amarelo, lilás e dourado predominando. No horizonte, já se
avistavam as primeiras estrelas mas nao eram por enquanto suficientes
para tantos desejos.
FIM
Nota do narrador: O funeral teve lugar no Cemitério das Alminhas, em
Penacova. A localizacao do evento foi unânimamente acordada em
concílio e todas as providências para que todos os presentes tivessem
Génova… satisfação q.b.
Há 13 anos
Fiquei deveras deliciado, a devorar tão bela desgutação que nos presentearam. Fiquei com remorsos no fim, por ter acabado, mas repeti mais uma vez, mais outra... Quando dei por mim, tinha lido e relido inúmeras vezes. Sem dar conta, de tal. Mas o prazer era tanto que não me consegui conter. Bravo a quem escreveu tão belo e encantador texto.
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